domingo, 10 de abril de 2011

O PRAZER E A CULPA.


Contardo Calligaris


Admirei a reação dos japoneses diante do desastre - terremoto, tsunami, contaminação nuclear. Nas declarações oficiais e nas palavras das vítimas, a catástrofe é apenas um acidente: pode haver responsáveis por falhas na prevenção, na segurança ou nos socorros, mas a catástrofe em sí não tem sentido algum. Será que nós, ocidentais, seríamos capazes da mesma atitude?
Não sei.
A peste assolou repetidamente a Europa do século 14 ao 18. A primeira grande epidemia, de 1347 a 1352, matou um quarto da população européia. Para que o horror não induzisse ninguém a pensar que o universo era sem sentido, duas reações populares: 1) perseguir judeus e bruxas, supostamente responsáveis pelo contágio, 2)juntar- se aos flagelados, penitentes que erravam pelo continente se fustigando até o sangue.
Para o flagelante, a peste era um castigo pelos pecados do mundo; portanto, punir-se por eles talvez fosse o jeito de tornar a peste desnecessária.
Naqueles quatro séculos, a Europa se cobriu de igrejas que eram construídas como oferendas para que a epidemia se acalmasse; nelas, homens e mulheres faziam promessas, pedindo para serem poupados.
Ainda hoje, na calamidade e no medo, a promessa que acompanha o pedido feito a Deus ou aos santos sempre propõe uma renúncia: o pedinte se engaja a se privar de algo, do sexo ao chocolate. Funciona assim: 1) meu prazer e meu gozo são sempre culpados, 2)portanto, qualquer mal que me assole se explica como punição de minhas culpas, 3)a renúncia aos meus prazeres pode me redimir e estancar a punição.
Como chegamos a fazer esse estranho uso dos prazeres, ou melhor, da renúncia aos nossos prazeres? Três respostas, não excludentes (e insuficientes).
1) Bem ou mal, educar implica conter, impor frustrações e renúncias. Com isso, a aprovação dos educadores sempre parece proporcional à aceitação das renúncias pelos educandos. Ou seja, os jovens podem ser levados a pensar que é só frustrando seus próprios desejos que eles ganham o amor dos adultos.
2)No fim do primeiro milênio, cada vila européia vivia no medo de bandos errantes. Quando eles se aproximavam, o povo se reunia na igrejinha e rezava. Isso não impedia nem saques nem estupro. o que pensar quando os bandidos iam embora? Deus não nos protege porque não existe? Deus existe, mas não dá a menor para a gente? Devia triunfar a versão que conciliava o desastre com a existência de Deus: o próprio Deus mandou os bandidos para nos punir de nossos pecados.
3)Talvez seja menos angustiante viver num mundo que faz sentido do que num mundo que não teria sentido algum. Por exemplo, como é que você aguentaria o pensamento da morte futura sem o conforto da idéia de que ela está incluída numa ordem cósmica ou num plano divino?
Infelizmente, esse conforto tem um custo alto, pois o jeito mais fácil de garantir a existência de um sentido do mundo consiste em me atribuir a culpa por todos os males.Ou seja, minha culpa e meu esforço para me redimir "provam" que existe uma ordem (justamente, a que eu ofendia quando me entregava a meus prazeres).
Corolário: se meus prazeres culpados são a causa dos males, não preciso responder "adequadamente" às calamidades, bastará modificar minha conduta de modo que minhas ofensas sejam perdoadas.
Além de dar sentido ao meu mundo, a culpa me oferece a ilusão de agir de maneira eficaz: como flagelante, posso esperar que minha renúncia ao prazer suspenda a punição. De repente, doenças e catástrofes talvez parem diante de minha conduta meritória. Em vez(ou além)de procurar as condições de prevenir um terremoto ou de debelar um câncer resistente, rezarei noite e dia e me fustigarei em penitência. Se, de qualquer forma, o terremoto vier ou o câncer triunfar, será porque não me açoitei o suficiente.
Pois bem, não acredito que, em nossa cultura, esse bizarro uso dos prazeres e da culpa tenha mudado substancialmente nos últimos sete séculos. Continuamos fundamentalmente inimigos do nosso prazer.
Prova disso: há, hoje como no século 14, bandos errantes que denunciam nossos tempos "hedonistas" e nossa voracidade por prazeres e gozos. São os flagelantes verbais: criticam o prazer para fomentar a culpa.
É o jeito (custoso) que eles acharam para dar sentido ao mundo.

2 comentários:

  1. “O que o Cristianismo criou? O medo da vida, o homem amedrontado, a esperança no nada, o desacreditar no homem e em suas forças; negou a vontade e a vida. Para o homem ser feliz, ele tem que se abdicar de seus pensamentos, de sua vontade, de seu querer e poder. O homem não pode ser feliz na terra; ele há que ser feliz noutro plano, noutra dimensão futura. Ora, o homem, então, está e sempre esteve condenado, purgando seus ‘pecados’, atado a si em penitência; o homem tem que pagar, tem que honrar seus débitos. Mas que débitos? E que culpa? De ser homem, de querer superar-se, de pensar, de ser ele e não precisar de forças superiores ou de controles invisíveis que o governem ou rejam a sua existência. Quão teatral é a vida! E no palco, todos somos atores ruins, pois o interesse não está aqui, está no depois. Todos estamos em teste, somos projetos; estamos sendo avaliados, perscrutados. Que delírio persecutório mais doentio! Que certeza patogênica! Quanta ditadura! Se não somos nada, qual o porquê do depois? Tornamo-nos algo desinteressante, algo não verdadeiro. É essa a negação da vida, a negação do homem; assim se adoece, se enlouquece o homem, e se diminuem as suas forças. O niilismo aqui impera. ‘Crê que não és nada, pois o paraíso virá e salvar-te-á.’ ”
    Um olhar mais atento na realidade atual pode nos mostrar que os prazeres e os desprazeres da vida mudaram, no entanto, a essência do sentimento de culpa, isto é, sua capacidade de mutilar a vida e a alegria do aqui-e-agora em detrimento de uma vida eterna, continuam vingando, fazendo vítimas e sepultando pessoas. Vemos isso com freqüência em nossa sociedade predominantemente religiosa: o desejo sexual reprimido retornando em forma de neuroses; a violência contra a mulher e as crianças; os sacrifícios de animais que lamentavelmente ainda são praticados como forma de redenção; a culpabilização do corpo e da vida material enquanto algozes da moral cristã, etc. – Além da terrível e brutal esterilização de pensamentos questionadores dos dogmas, implicando em autopunições danosas ao fiel que “ousar” se perguntar quanto à veracidade de seus valores.
    As formas que o sacrifício e a flagelação podem assumir irão variar de acordo com os graus de fé e submissão.

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  2. O Contardo Calligaris analisa bem estes aspectos que você tão bem detalhou.
    O medo que se instalou, foi muito maior que a fé, e ainda o é.
    Sempre então, aqui no Ocidente, após o prazer, vem a danada da culpa. Mas, o ser humano é hedonista, adora um prazer.
    Que atire a pedra quem não gosta de uma boa comida, uma boa bebida, um passeio ansiado, o amor bendito, a música, a poesia, o cinema, os livros, enfim, tudo o que nos faz bem e contenta.
    É próprio do humano, tudo isso.
    Apenas nos esquecemos...

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