quinta-feira, 2 de abril de 2009

ACORRENTADOS - Paulo Mendes Campos


"Quem coleciona selos para o filho do amigo; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de sí mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava, quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre; quem se rí das próprias rugas; quem decide aplicar- se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental; quem procura na cidade os traços da cidade que passou; quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupa para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira; quem manda livros aos presidiários; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem escolhe na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias do amigo morto; quem jamais negligencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe derem de presente, o isqueiro que não mais funciona; quem, não tendo o hábito de beber,liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga; quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos; quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças; quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos líquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição; quem se desata em sorriso à visão de uma cascata; quem leva a sério os transatlânticos que passam; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga adivinhar o pensamento do cavalo; todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre."

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Sem dúvida, este texto de Paulo Mendes Campos, extraído do livro "O Anjo Bêbado", é um dos mais tocantes na língua portuguesa.
Vocês se verão, aqui e alí, numa determinada frase, pois os caminhos são os mesmos, os caminhantes é que se alternam...

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